Canibalismo documentado em várias regiões, incluindo guerras floridas. Aspectos contraditórios sobre práticas individuais e sociedades pré-estatais. Novas definições contemporâneas.
O recém-lançado filme A Sociedade da Neve, do diretor espanhol J.A. Bayona, que aborda a controversa prática do canibalismo, tem surpreendido espectadores ao redor do mundo com sua abordagem impactante e realista. A história envolvendo um grupo de sobreviventes que precisou recorrer ao canibalismo para sobreviver nas duras condições das montanhas geladas tem gerado debates acalorados entre críticos e o público.
O canibalismo, também conhecido como antropofagia, é uma prática extrema que remonta a séculos e desperta curiosidade e repulsa ao mesmo tempo. Filmes como A Sociedade da Neve exploram os limites da sobrevivência e os dilemas morais enfrentados por aqueles que se veem em situações desesperadoras. A representação fiel desses eventos chocantes pode ser perturbadora para alguns, mas serve como um lembrete da capacidade humana de se adaptar a circunstâncias extremas.
O canibalismo na história
E um aspecto muito marcante da questão do canibalismo praticado pelos sobreviventes para conseguirem se manter por mais de dois meses numa montanha inóspita, cercados de neve, pedra e frio, a mais de 5 mil metros de altitude. Sabe-se que, após o resgate, os jovens inicialmente esconderam da imprensa e familiares que tinham praticado canibalismo para sobreviver.
Quando o fato foi descoberto, pouco tempo depois, eles foram julgados e censurados pela opinião pública e pelos meios de comunicação. E foram chamados, pejorativamente, de ‘canibais’.
Mas o que é canibalismo?
O canibalismo é definido como o ato ou a prática de comer membros da própria espécie. Refere-se geralmente a humanos que comem outros humanos.
O caso mais antigo de canibalismo foi atribuído aos Neandertais, e há mais de 100 mil anos a gruta francesa de Moula-Guercy foi testemunha desse fato. O canibalismo é uma prática documentada na África Ocidental e Central, na Melanésia, na Nova Guiné, em algumas ilhas da Polinésia e em tribos da Sumatra. Também era comum nas sociedades pré-estatais.
Casos individuais e descrições contemporâneas
Na história contemporânea, alguns casos individuais foram atribuídos a indivíduos instáveis ou criminosos e a situações difíceis, como a crise alimentar na Ucrânia, na década de 1930, e na Segunda Guerra Mundial, durante o cerco de Leningrado e em Bergen-Belsen, de acordo com os oficiais britânicos que libertaram o campo de concentração. Mas a sua atualidade é controversa.
O que é geralmente aceito é que as acusações de canibalismo têm sido historicamente mais comuns do que a própria prática, como refere Alberto Cardín no livro Dialéctica y Canibalismo. O canibal foi quase sempre ‘o outro’ no imaginário colonial. O termo canibal é um legado de Cristóvão Colombo.
É a deformação de ‘Carib’, um povo originário das Índias Ocidentais e que Colombo acreditava ser súdito do Grande Khan da China (kannibals).
Colombo, preparado para se encontrar com o Grande Khan, tinha consigo intérpretes de árabe e hebraico e, ao ouvir dos nativos a palavra ‘caniba’ (ou ‘canima’), pensou que estes poderiam ser os homens com cabeça de cão (cane-bal) descritos pelo explorador John Mandeville.
Povos do passado e práticas de antropofagia
No transcorrer da história, os judeus já foram acusados de comer crianças cristãs, assim como os ciganos. Na Antiguidade, os gregos relataram casos de antropofagia entre povos não-helênicos, os ‘bárbaros’.
E os espanhóis e portugueses fizeram o mesmo em relação à práticas antropofágicas registradas no Império Asteca, no México, durante as chamadas guerras floridas, e entre os índios Tupinambás do Brasil, nas primeiras décadas do período colonial.
Neste sentido, William Arens salientou que, para além dos casos de canibalismo praticado por necessidade, a prática é um mito e que a descrição de um grupo humano como canibal é apenas uma reivindicação retórica e ideológica para estabelecer uma superioridade moral sobre esse grupo.
Na mesma linha, Michel de Montaigne assinalava que na Europa, no século 16, qualquer pessoa ou coisa com hábitos diferentes aos tradicionais era chamada de bárbaro (ou canibal). Ele considerava as guerras religiosas no seu país natal, a França, e a prática de tortura praticada pela própria Igreja mais bárbaros do que, por exemplo, a prática dos Tupinambás de ingerir o corpo de um defunto.
Canibalismo e perversões individuais
O canibalismo seria um fenômeno mais típico, não de povos exóticos, mas uma consequência de perversões individuais, situações catastróficas e peculiares. Nos anos 1990, jornalistas ocidentais escreveram sobre o canibalismo no contexto da guerra civil da Libéria (1989-1997).
O historiador Stephen Ellis sugeriu que as causas não eram apenas políticas, mas podiam ser explicadas em termos religiosos ou espirituais característicos dos rituais das sociedades secretas. Em suma, as descrições contemporâneas do canibalismo, que parecem ecoar os estudos arqueológicos, mostram que, de uma forma ou de outra, como assinalou Claude Lévi-Strauss, ‘somos todos canibais’.
Fonte: © G1 – Globo Mundo