Inclusão mundial da Regra Moral: empresas não devem lucrar causando prejuízos. Premissa questionável, necessária reinvenção do sistema.
Quando se fala em capitalismo, logo vêm à mente sistemas econômicos baseados na propriedade privada dos meios de produção e na busca pelo lucro. No entanto, é preciso reconhecer que nem todos os países adotam o mesmo modelo de capitalismo. Há variações que refletem diferenças culturais, sociais e políticas.
O sistema econômico baseado na economia de mercado, fundamentado na oferta e na procura de bens e serviços, tem suas raízes no capitalismo. Mesmo com seus desafios e contradições, é inegável o papel desempenhado pelo capitalismo na construção das sociedades modernas. É importante, portanto, buscar maneiras de aprimorar esse sistema econômico para garantir mais benefícios para a sociedade como um todo.
Uma nova visão sobre o capitalismo
É o caso de Colin Mayer, em seu mais recente livro, ‘Capitalism and Crises – how to fix them‘ (Oxford University Press, 2024), ainda não publicado no Brasil.
Mayer é um renomado professor, ex-diretor da Said Business School, em Oxford, e autor de dois outros livros sobre o tema da desigualdade e da necessidade de uma reinvenção do capitalismo: Firm Commitement e Prosperity.
O desafio do capitalismo em tempos de crise
Mayer não quer abolir o capitalismo, que, nas suas palavras, ‘é o rei sol do século XXI a quem nós todos viemos adorar e a quem deveríamos agradecer a cada noite antes de dormir’. No entanto, ele reclama, com razão, dos ‘capitalistas criacionistas‘, que tratam qualquer crítica ao funcionamento do capitalismo como uma ‘ameaça fundamental a nossas liberdades, direitos e interesses’, um ataque à democracia, aos direitos humanos – coisa de ‘lobo planejador central disfarçado de cordeiro capitalista‘.
Desafios e propostas para o futuro do capitalismo
Ciente dos riscos, Mayer debruça-se sobre o tema com firmeza e profundidade, cita experiências que funcionaram em certos lugares, e propõe alterações substanciais em alguns dos pilares fundamentais da estrutura de nossas empresas – das leis que as regem, à sua propriedade e governança; das medidas de seu resultado ao seu financiamento.
O livro de Mayer é assumidamente ambicioso. Talvez por isso, em meio a boas ideias que merecem atenção, desenvolvimento e experimento, suas propostas soam irrealistas.
Redefinindo o propósito das empresas no contexto atual
É o caso de suas ideias centrais: a inclusão, nas leis de todos os países do mundo, de uma mesma norma – que chama de Regra Moral, e enuncia, com maior ou menos detalhe, ao longo da obra, mas segundo a qual o propósito das empresas incluiria, necessariamente, não obter lucros causando prejuízos a terceiros. Para tanto, Mayer propõe que as empresas (e também governos e entidades sem fins lucrativos) investiguem que danos sua atuação pode vir a causar, e não se dediquem àquelas atividades que causem prejuízos a terceiros, a não ser que sejam capazes de adotar as medidas necessárias para evitá-los ou compensá-los, se isso for possível.
O autor reconhece que esse caminho poderia levar a que os custos de prevenção ou remediação de danos tornasse uma determinada atividade não lucrativa.
O que terminaria por impedir aquela atividade, já que, como o próprio Mayer afirma, o lucro é essencial – ‘a força vital dos negócios’ –, e sem ele não haverá investidores para financiar o empreendimento na escala necessária a causar impacto.
Propostas práticas para a transformação do sistema econômico
Como solução, Mayer propõe que, se houver interesse público em uma determinada atividade que cause prejuízo a terceiros, o Estado arque com os prejuízos, de maneira semelhante ao que ocorre, por exemplo, em uma parceria público privada. O autor não explica, contudo, como esse juízo seria feito, nem enfrenta os riscos de atribuir esse exame prévio ao próprio Estado.
Quanto a esse tema, a solução do direito brasileiro parece melhor. Por um lado, o parágrafo único do art. 170 da Constituição assegura ‘o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei‘. E, por outro lado, o parágrafo único do art.
Uma nova abordagem para a função social das empresas
927 do Código Civil manda reparar os prejuízos, independentemente de culpa, se ‘a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem‘. Coisa que outras leis também fazem com mais detalhe, em determinados casos.
A verdade é que o ponto central do livro de Mayer é uma derivação do antigo debate sobre o propósito das companhias, que confronta o pensamento de Milton Friedman, expresso em seu célebre artigo de 1970 no New York Times – para quem o objetivo das empresas é obter lucro –, com as correntes que atribuem às empresas uma função social.
O livro termina, aliás, com uma sugestão de acréscimo à tese de Friedman: o propósito é obter lucro, mas não fazê-lo se isso ‘produzir problemas para os outros’. Além disso, Mayer propõe que o propósito revisto das companhias ‘seja o critério contra o qual seu sucesso será julgado’ e, ainda, a ‘base dos julgamentos pelos tribunais quanto ao cumprimento, pelos administradores, de seus deveres de lealdade e de diligência com os acionistas’, devendo as empresas manter sistemas e processos para acompanhamento do cumprimento daqueles deveres.
Desafios atuais e soluções futuras para o capitalismo
O livro de Mayer não menciona o fato de que, desde 1976, a Lei de Sociedades por Ações brasileira inclui, entre os deveres dos administradores – e também dos acionistas controladores –, o de atuar para que a companhia realize não só os seus objetivos empresariais, mas também cumpra sua função social.
E que diversas leis responsabilizam as empresas que não o façam – e eventualmente a de seus sócios. Mas se nossas leis anteciparam a solução proposta por Mayer, isso significa que o capitalismo, no Brasil, não tem os problemas por ele apontados? Claro que não, o que prova que as sugestões mais importantes do livro não são as de alterações legislativas.
Até porque reprimir o descumprimento de leis é necessário, mas quase é um meio ineficiente de resolver problemas. Por isso mesmo as propostas mais interessantes do livro de Mayer são as que podem ser implementadas pelas próprias companhias e seus acionistas e financiadores – sejam provedores de crédito ou capital.
Elas incluem clareza quanto aos valores e cultura das companhias, e a presença, entre os acionistas, de investidores com participação relevante e comprometidos com a função social da organização, a começar pelo bem-estar de seus empregados e o cuidado com as comunidades afetadas por seus negócios.
Fonte: @ Valor Invest Globo